segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

SALVAR O SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE


 
Com este título, publicaram os Srs. António Arnaut e João Semedo um pequeno livro propondo “ Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a Democracia “.

Oportuno trabalho na altura em que muito se fala do SNS, como referi no meu texto anterior “Defesa do Serviço Nacional de Saúde “

A proposta, alem de acrescentar e actualizar certos assuntos ( genética médica, procriação medicamente assistida, interrupção voluntária da gravidez, terapêuticas não convencionais ) em função dos avanços sociais e científicos e da necessidade de os integrar na lei, preocupa-se bastante com as relações com a medicina privada.

A lei de bases em vigor, a nº 48/90 foi publicada no tempo dum dos governos do Sr. Cavaco Silva (CS) e substituiu a lei original nº 56/79 que, no tempo do governo da Srª Maria de Lurdes Pintasilgo foi criada pela Ministro dos Assuntos Sociais, Sr. António Arnaut (AA).

Comparemos algumas das alterações agora propostas com os textos anteriores :

 Na lei AA, no Art. 52º o legislador diz que (passo a citar ) “O SNS articula-se com a existência e funcionamento de instituições não oficiais e formas de actividade privada no âmbito do sector da saúde…” .

 E no art. 53º está dito que “ podem ser estabelecidos convénios entre o SNS e instituições não oficiais e privadas… nos casos em que a rede de serviços oficial não assegure os cuidados de saúde… “

Portanto para AA, as instituições privadas eram recurso a usar em casos de insuficiência do SNS

A lei de bases do governo CS, na base XXXVII, diz, e passo transcrever :

1. O Estado apoia o sector privado de prestação de cuidados de saúde em função das vantagens sociais decorrentes das iniciativas em causa e em concorrência com o sector público.

2. O apoio pode traduzir-se nomeadamente  na facilidade de mobilidade do pessoal do SNS que deseje trabalhar no sector privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas e na reserva de quotas de leitos de internamento em cada região de saúde.

Avaliemos esta  Base XXXVII à luz do que diz a Constituição da República.

Para isso começo por transcrever o  Art. 64º ( Saúde ) ,                 

1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.

2. O direito à protecção da saúde é realizado:  
a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.


3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado                                                                                  
a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;
c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;
e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.


4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

Do articulado tira-se que o Estado deve “garantir uma eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde” e que a única referência que è feita à actuação de privados na prestação de cuidados de saúde aos cidadãos figura na alínea d) no número 3

Portanto, a constituição não prevê  concorrência, no sentido comercial do termo, entre SNS e medicina privada e muito menos a criação de incentivos. A referida Lei Base é pois deturpadora do espírito e da letra da Constituição e deve ser radicalmente alterada.

Com aquele apoio é óbvio que os seguros de saúde e o comércio de serviços de saúde prosperaram : em 2006 foi inaugurado o Hospital da Luz, em 2008 o Hospital dos Lusíadas, em 2011 o Hospital Cuf Descobertas , só para dar alguns exemplos.

 É evidente que hospitais particulares de saúde, alem dos das Misericórdias, sempre, ou quase sempre, houve (também a título de exemplo, cito alguns em Lisboa, o Hospital da Cuf perto da Av. Infante Santo, o de S. Luís do Franceses, o da Ordem Terceira de S. Francisco.)

E têm todo o direito de continuar a existir, o que não devem é ter  o apoio do Estado a não ser nos casos em que o Estado ainda não possa satisfazer as necessidades de saúde da população – tal e qual como na instrução pública.

A maior fonte de receita dos hospitais particulares deriva, penso eu dos contratos com as companhias de seguros ( ver adiante ). Por meio de seguros as pessoas podem ter direito a certos cuidados de saúde no sector privado e os empregadores podem conceder esses benefícios aos seus empregados. E as despesas contam para diminuir, respectivamente, o IRS e o IRC. Se no primeiro caso não há discussão possível, pois a Constituição diz que os custos com a saúde para os utentes são tendencionalmente gratuitos, no segundo caso o facto de os seguros de saúde para os empregados ser motivo de desconto no IRC das empresas pode ser discutível pois diminui as receitas do Estado – receitas essas que poderiam ser usadas para melhorar o SNS.

Como assunto diz respeito a impostos, cabe a cada governo, de acordo com sua ideologia, a situação do momento ou o interesse nacional, decidir

A Constituição não fala de seguros de saúde e a lei AA nº56/79 também não. Mas a lei nº 48/90 do governo CS estabelece na sua Base XLII que “A lei fixa incentivos ao estabelecimento de seguros de saúde”. Qual terá sido a utilidade deste favorecimento? Ajudar as companhias de seguro a ganhar dinheiro, passar as obrigações constitucionais do Estado na saúde para os privados ? Não é aceitável à luz da Constituição.

Na nova proposta de Lei de Bases para a Saúde, AA e João Semedo corrigem este erro através da Base XLV que propõe

1. Os seguros privados de saúde são de adesão voluntária e têm natureza suplementar relativamente ao SNS .

2. Os prestadores de cuidados de saúde são responsáveis pela continuação e conclusão de qualquer tratamento que tenham aceite iniciar sob a cobertura do seguro de saúde, não podendo o mesmo ser interrompido ou descontinuado em virtude da cobertura da respectiva apólice ser insuficiente para assegurar o pagamento da despesa realizada ou prevista .

 O último tema de que vou falar é o das taxas moderadoras. De facto o Art. 64º da Constituição acima transcrito prescreve que os cuidados a prestar pelo SNS sejam tendencialmente gratuitos.

O Art. 7º da lei AA embora afirme que o SNS é gratuito para os utentes, prevê a introdução de taxas moderadoras.                             

A lei do governo CS também prevê a imposição de taxas moderadoras.

Porem, a Lei de Bases proposta afirma a gratuitidade do SNS, não falando em taxas moderadoras. Apesar do avanço social que esta atitude sem ´dúvida representa, a existência de taxas moderadoras, razoáveis mas não impeditivas, é uma solução de alcance prático e NÃO é anti constitucional. Neste âmbito, uma sugestão para esta altura do ano em que se fala de exagerada utilização dos hospitais públicos em detrimento dos centros de saúde : porque não diferenciar as taxas moderadoras entre uns e outros ?

A minha opinião a “salvação do SNS de qualidade”  só se consegue com mais investimento público que se traduza em melhores serviços ( em todos os aspectos ) à disposição dos Portugueses. Os sector privado deve ser apenas suplementar.

 

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2018

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